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O idealista

Já era muito tarde, e um vento gelado soprava de nordeste. Tudo era rocha e grama dos dois lados do caminho, e até mesmo a relva parecia estar seca e cinza de medo do sangue. Mas não tu. Tu caminhavas para a morte como um adolescente caminha para a amada. Andavas na direção do próprio destino, que sabias não ser bom, como se o desejasses, como se aquela fosse a morte com a qual sonhastes por toda a tua vida. É pouco provável, mas talvez tu nunca tivesses sonhado com a morte. Ou então sonhastes com uma morte tranqüila, quando as tuas faces estivessem enrugadas de cansaço e teus cabelos esbranquiçados de tempo. Mas o que mais te vejo sonhar é com uma morte rápida e muito dolorosa, na mão daqueles que combateste, porque essa é a morte mais desejada por aqueles que defendem um ideal com o próprio sangue.

Tu, que estiveste tão presente em tantos momentos da nossa história, não poderias morrer diferentemente dessa vez. Em todas as tuas outras aparições, morreste na glória, banhado pelo teu próprio sangue, que caía em bicas pelo bem do teu povo. Morreste em Esparta e em Paris por daquilo em que acreditavas. Morreste no Haiti e morreste na Somália, e ainda morres, diariamente, em tantos lugares que é impossível contar. Teu sangue redime os pecados daqueles que não merecem tê-los redimidos; tua cabeça é por eles exposta em praça pública e teu corpo esquartejado visita as casas daqueles que tanto acreditaram em ti, para que estes percam a esperança e jamais lutem novamente. Mas tua chama está sempre acesa, e tua luz sobrepõe todas as outras, indo juntar-se às das estrelas mais brilhantes e mais jovens do Universo.

Embora cansado, ainda caminhas. Teus passos ecoam nos ouvidos do mundo e deixam rastros impossíveis de serem apagados ou escondidos. Tua espada deixa um barulho metálico de choque com as pedras por onde passa, mas teus próprios ouvidos não conseguem distinguir tal som; muito menos teu olfato distingue o cheiro de flor que o vento traz. Tudo em ti é morte. Tu és a morte. Teus olhos refletem o horror e a delícia de morrer nas mãos dos inimigos pelos teus ideais; teu nariz só sente o cheiro do teu sangue, que ainda há de ser derramado; tua boca sente o gosto agridoce da vitória derrotada; tua pele percebe o toque leve do vento a brincar com esse minuto de tensão extrema, no qual te recordas de ti.

Não te apresses; ainda há tempo até que desça sobre ti o peso do fim da existência. Aproveita esses momentos para recordar-te da tua vida, do tempo que passaste discursando aos que não entenderiam de outra forma, dos dias inteiros que perdeste premeditando seus passos, a fim de não cair nessa arapuca a qual daria fim à tua vida. Mas o destino é um amigo cruel; ele não perdoa dívidas e não dá o braço a torcer. O maior erro na tua vida foi ter contraído dívida com o destino. Se não o tivesses feito, talvez agora estivesses livre para fazer o que quisesses. É fácil entender, todavia, porque tua vida é tão diferente. Isso não é obra do destino. Foi pura e simplesmente tua escolha cair da corda bamba em que te equilibravas debilmente. Andaste para esta morte, com tuas próprias pernas, e com nada menos que teu sangue pagarás por essa escolha.

Teu semblante cansado é parcamente iluminado pela lua, e o mundo sente dó de ti. Mesmo aqueles que te condenaram agora viram o rosto, tentando se mostrar simpáticos à tua dor. Mas só tu mesmo sabes o que é estar defronte a todos contra os quais tanto lutara, pronto para morrer pelas mãos deles. Só tu sabes o quanto dói ter a vida tolhida em favor de idéias... Só tu sabes, e só agora descobristes, que não vale a pena viver de idéias. Idéias mudam, idéias acabam. São perecíveis. Tu também és perecível, mas tens o direito de escolher como viverás tua existência perecível; as idéias todas vivem do mesmo modo: parasitas de pessoas como tu, que vivem delas.

Teus joelhos tocam o chão, e aqueles que te condenaram agora têm o rosto transfigurado. Se antes teu semblante era, para eles, digno de pena, agora é nada mais que uma ameaça, algo que deve ser eliminado antes que dê frutos. Tuas vistas estão turvas, e não vês nada além de morte. Se antes eras a morte, agora a morte é em ti. Crave tua espada no chão pedregoso mais uma vez! Grite aos céus que te salvem a alma, que teu corpo é o que menos importa! Mas tu não fazes nada disto, porque não é necessário. Não queres que te salvem a alma, muito menos o corpo. Basta que salvem tua mente, teus conhecimentos, e repousarás em paz. Basta que não deixem que te arrependas...

O carrasco conduz-te à morte, e tu te levantas para recebê-la com bravura. Não há nada digno de piedade em tuas feições, mas sim, de orgulho; deixaste a vida em prol das tuas idéias, com a esperança de que, um dia, estas se cruzassem com outras e se reproduzissem, e, assim, suas netas pudessem alcançar o que as avós não conseguiram.

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